sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Elena

Era noite. Não, não era noite. Era fim de tarde. Um belo fim de tarde, quando luz e trevas se encontravam, borrando o horizonte e trazendo lágrimas ao negro dos olhos de Elena. A maquiagem mostrava o que ela não era, mas gostava de aparentar, e todos os dias ela chorava ao observar aquela tela em aquarela, pois sabia que poderia ser o último.

Seus pés percorriam o corriqueiro caminho, ladeado por um muro e por uma avenida. Cerca de um metro e meio a separavam de sua provável morte. Elena pensava em como a diferença entre viver e morrer era breve. Talvez menos de um segundo; tempo suficiente apenas para se dar conta de que não mais se vivia. A avenida que corria ligeira ao seu lado era das mais movimentadas da cidade e ela com cautela, fazia seu curso entre os outros pedestres, sempre desviando do fluxo de final de tarde.
Há alguns metros de onde ela estava, do outro lado da via, vinha uma mulher carregando algumas sacolas de mercado. Elena olhou para ela com a mesma curiosidade que tinha para com os demais pedestres; perguntou-se de onde ela vinha, o que tinha comprado. Desejou poder penetrar nas entranhas da mente daquela mulher, saber quem ela era. No entanto, embora se perguntasse, a mulher não lhe despertara nenhuma atenção especial. Ela era apenas um rosto em meio a uma multidão disforme e apressada, como a própria Elena.

A mulher que passava de repente resolveu atravessar a avenida. Parou, as sacolas fizeram aquele barulho irritante de sempre, e sem olhar ela atravessou. Ela confiou que Deus a protegeria caso não fosse o dia de sua morte. Infelizmente ou não, Deus pareceu, com seu humor negro, que era.
Um carro popular, desses de gosto suspeito, parecia querer exibir sua potência descendo aquela curva em alta velocidade. Todos pararam para olhar. Olhavam não para o carro, nem para o que restava daquela mulher de nome ignorado. Todos olhavam para uma garota que por coincidência havia saído mais cedo da escola, e cujo rosto via-se estampada a mesma expressão de momentos antes. A camiseta excessivamente branca agora estava banhada de sangue. Elena demorou a voltar a si, o que só ocorreu quando sentiu o gosto metálico do sangue de outrem em seus lábios, beijando-os silenciosamente.

Alguém que vira o fatal atropelamento chamou uma ambulância. Não para a mulher de nome ignorado, mas sim para a garota. E não porque ela chorava ou houvesse desmaiado, mas sim porque ela não tivera reação alguma. Sequer lágrima descera por seus olhos negros e intrometidos. Elena não reagiu quando foi levada pelos homens de branco naquele veículo barulhento, mas ela sentiu cada solavanco do carro no asfalto irregular. O hospital mais próximo pareceu estar a quilômetros de distância, e a cada metro percorrido a jovem ficava mais pálida.
Perguntaram seu nome uma, duas, três vezes. Ela não respondeu. Buscaram por algum aparelho de celular ou documento pessoal, mas ela havia deixado-os em casa, para que a mãe a inscrevesse no vestibular. O celular também ficara em casa, carregando. Pela janela com decalque de cruz o sol se punha, solenemente silencioso, por entre as pernas de vários espectadores pasmos. Algum futuro candidato a prefeito disse, em voz alta para que todos ouvissem: – É isso que teremos enquanto o atual governo existir. Votem em... – e aos poucos sua voz foi sumindo em meio ao som dos passos se arrastando, sendo levado pela luz às trevas, num caleidoscópio. Aquele era apenas mais um acidente, uma estatística. Nada mais.