sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Metalinguagem

Começar é a parte mais difícil. Mesmo após anos de prática, ela ainda sente dificuldades em escolher as palavras - e talvez seja por isso, porque ela escolhe as palavras ao invés de simplesmente dizer o que quer dizer. Talvez seja esse o grande mistério que aqueles silêncios constrangedores têm a dizer quando dançam pela sala e vez ou outra param entre as duas. Eles sussurram: você fez más escolhas.
Intimamente, ela sabe que não são só más palavras. Ela também sabe que silêncios não podem sussurrar coisas, mas depois de tantos anos, nem ela tem certeza de que eles sussurram, nem de que um dia o fizeram. Ela não se importa com o código, mas sabe decifrar a mensagem que ele carrega.

Engraçado é que ela fuja disso, da mensagem.
Para ela, todos os códigos são importantes, tanto quanto a própria mensagem. São todos organizados em linhas retas e paralelas, meticulosamente distantes o suficiente para que sejam legíveis e compreensíveis, embora não haja muito o que ela diga depois que o código foi escrito. No último encontro, passaram duas horas em silêncio total. De uma forma estranha, não foi constrangedor ou coisa assim, só foi... estranho. Após anos de prática, sussurradores já não são um incômodo para elas.

Hoje é dia de encontro.
Ela chega, cautelosa e cheia de espectativa como uma criança curiosa. Senta-se na cadeira, fingindo descontração, mas é impossível disfarçar. Quando a doutora pergunta se quer conversar, ela responde de imediato.
- Andei pensando numas coisas.
Ela espera algum sinal para que prossiga, mas é como quando fala com o espelho. Depois de algum tempo, a gente esquece de como é burlar.
- Sobre o passado e tal.
Silêncio. Nenhuma das duas sabe o que falar. Ela não sabe se deve prosseguir, a doutora, não se lembra de ter trancado a porta ao sair de casa. Silêncio constrangedor, enquanto sombras negras começam a se entreolhar: nem elas têm certeza se é a sua deixa, se podem começar a sua valsa sussurrante, ou se é apenas um momento quando o processo fica lento e as ideias se complicam.
Porém, é fato que o código, apesar de bem escrito e bem escolhido, falha. Nenhuma das personagens sabe o que fazer em seguida.

- Pergunte-me o que diria para a minha criança de sete anos.
Apesar de o código ser inadequado e a mensagem, inócua, o pensamento precisa sair. É como se ela só jogasse a mensagem dentro de uma caixa de sapatos porque precisa libertar-se daquela obcessão. Precisa esquecer aquilo que a assalta e a deixa sem ar. É uma ideia, a doutora compreende. Um parto se aproxima e ela pode imaginar que a criança já chora dentro da vagina, impaciente de nascer.
Mais por piedade que por compaixão, ela pergunta.
Silêncio. Ninguém sabe o que falar, porque já não há código que o diga, mas é só uma pequena mensagem, ela pensa. E pensa também em como é difícil interpretá-la sozinha, quando não há nada - nem sussurradores - que a impeça, que lhe dê um limite ou uma razão. Sem código, ela é só e só é a mensagem.
Os sussurradores, por sinal, já estão vestidos e prontos: falta apenas a deixa que os levará para seus lugares - mas, espere, não há código! Sem o código, eles não saberão quando entrar! Ela suspira, entorpecida na descoberta. Olha ao redor e vê que todos eles a fitam, ansiosos pela deixa.
- Eu a levaria para uma ilha - ela diz, cuidadosa, fitando-os e recebendo seus olhares. Pela primeira vez, não há mensagem, ela pensa. Eles só estão aí por causa do código. Porque há um código que lhes diz que esse é o seu lugar, mas é um mal negócio: ele não diz o que devem fazer.
Isso é tarefa dela dizer. E ela está em silêncio.
- Eu a ensinaria a jogar cartas.