sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O mar

Somos por nossa natureza, sempre impelidos a buscar no desconhecido, na aventura, aquilo que não encontramos numa rotina. O mar, portando, foi apenas uma válvula bastante eficaz para saciar essa sede de aventuras: estava perto, ao alcance de um braço, e afinal, o que poderia haver de tão ruim naquele horizonte azulado, que os corajosos não pudessem enfrentar? Ah, havia lendas sobre criaturas mortais, mas elas, para o verdadeiro marinheiro, seriam mais como um incentivo à viagem do que uma centelha de medo, o que apavorava mães, irmãs, noivas, que em desespero choravam para que o aventureiro não partisse em busca de sua ambrosia.
Foi com homens assim que Portugal lançou-se ao mar sem demora. Conquistou a África, que lhe dava ouro e marfim, mas não o que Portugal queria. No caminho às Índias os portugueses esbarraram numa terra nova, que viria a se chamar Brasil; que daria muito lucro com suas matas verdejantes e suas terras intocadas, que daria também muita dor de cabeça com sua natureza indomável e rica.
Bem tentaram conquistar esse Novo Mundo, mas o mar pertencia a Portugal, e por extensão, tudo que nele houvesse. No fim, Portugal não queria as Índias, queria o Brasil. Dar a volta ao mundo foi só uma maneira de prolongar a aventura.

N/a: não contem para ninguém, mas essa foi minha melhor redação <3

sábado, 24 de dezembro de 2011

Memories (SS/HG)

Lembranças...


Cela 307, Azcaban
Atlântico Norte,
18 de setembro de 2004

Às vezes é preferível nem mesmo possuí-las, não é agradável prender-se à algo que mais cedo ou mais tarde será arrancado de você. Aqui, em Azkaban, você não pode dar-se o luxo de pensar, senão você descobre onde está e começa a enlouquecer.

Esse é o destino final dos servos ainda vivos do Lord, mas o que acontece aqui segue um rumo que nem nós mesmos não podemos prever. Tudo depende do que você pensa, do que fala e faz.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sozinha

Sozinha. Para sempre sozinha. Essa era a sua punição. Caminhar para sempre sozinha, sem envelhecer nem morrer, sem doenças ou dor. Só o fado de nunca mudar, nem rosto nem corpo, e ter de acordar todos os dias e deparar-se com o mesmo rosto dos últimos anos, sem tirar nem pôr, sem qualquer atributo. Não era bonita, nem sociável, nem inteligente, nem esperta, nem tinha força espetacular, nem iniciativa. Simplesmente existia dia após dia como se o anterior não existira nem o seguinte houvesse.

Elisa era seu nome e devia ter mais de trinta anos, mas ninguém notava. Ninguém a notava. Passava pelos mesmos lugares todos os dias, via as mesmas pessoas; pagava o cobrador do ônibus que indiferente recebia o dinheiro e a deixava passar, o motorista parava quando sua parada chegava, mas só porque ela apertava o botão, senão, também passaria direto. Elisa nem notaria que sua parada há muito havia passado, porque para ela a cidade era toda igual, e todas as cidades eram iguais, e tudo era igual a tudo, sem tirar nem pôr.

Um dia o verão chegou trazendo suas chuvas incessantes e uma coisa inesperada aconteceu. Não com Elisa, mas com o mundo. Ela, que não tinha tevê, não viu que os rodoviários estavam em greve, e como não tinha amigos para lhe avisar, nem rádio para ouvir, ficou tempos esperando parada. Não houve sinal algum de que a dupla indiferente passaria para recolher o seu dinheiro e deixa-la na porta do trabalho.
Como o tempo passasse e nada de os dois aparecerem – Elisa ignorava que eles vinham num veículo, embora dependesse deste – Elisa decidiu ir a pé para o trabalho. No caminho ela tropeçou várias vezes como se não houvesse aprendido a andar, e como inesperadamente, não podia ignorar todas as coisas e pessoas que estavam ao seu redor, como fazia desde- Desde quando? Ela não conseguia se lembrar, talvez sequer soubesse, talvez nem houvesse nada a ser lembrado. Elisa vagara por quase trinta anos sem qualquer marca, qualquer mancha em sua ingenuidade. Ela também não havia deixado marca alguma pelo caminho que percorrera. Passara ilesa pelos espinhos do caminho como uma salamandra escorregadia.

Chegando ao trabalho Elisa deparou-se com as portas de vidro do banco fechadas. Não havia qualquer aviso colado a elas, nem qualquer pessoa à vista. Tentou lembrar-se do dia anterior, mas não havia do que se recordar. Como ela descreveria o ontem? Ah. Elisa diria que ontem foi igual anteontem, que foram iguais nos últimos trinta anos.
Não havia vivalma na rua, embora fosse horário de pico e o banco ficasse numa rua movimentada. Elisa sentou-se encostada às portas de vidro e pôs a bolsa no colo. Olhou para um lado, depois para o outro, e ao voltar-se para cima deparou-se com um disco dourado que a ofuscou. Tapando os olhos ela permaneceu ali por horas, sem dizer palavra sequer.
Elisa já sentia os lábios fender-se quando passou nelas a sua língua úmida, e então parou como quem pausa um filme para ir ao banheiro. Devagar, em câmera lenta, ela refez o movimento. Sua língua passou pelo lábio superior e desceu astuta, para os inferiores. Se pudesse, Elisa apanharia um espelho, como as mulheres que via nos ônibus, e olhar-se-ia. Examinaria aquele movimento com curiosidade de criança até a exaustão, só pelo prazer de sentir sua língua banhar seus lábios ressequidos. Elisa nunca havia sentido aquilo antes e era uma sensação estranha, porque não sentia, com a língua, os lábios, nem vice-versa. Não era como quando esbarravam nela e sua pele alvíssima ficava avermelhada com a pancada. Não era como quando se deitava e o cobertor 50% algodão, 50% poliéster tocava sua pele deixando-a por vezes irritada. Não! Era tão diferente disso tudo que Elisa não tinha palavras para explicar o que sentia.

Na rua passou um cachorro rodeado de moscas olhando curioso para a mulher sentada no chão. Depois de satisfeito com a observação, empertigou-se como se dos cães de rua fosse o rei e se foi, sem ser notado por uma Elisa que lambia os lábios com avidez em busca de palavras para descrever aquela sensação – ou talvez a falta delas.
E a partir daquele dia Elisa passou a usar o calendário elisário. Cada dia ela anotava como a descoberta de uma sensação nova, um cheiro ou sabor. Para os meses ela usava nomes de músicas que gostava, aos anos reservava seus autores favoritos. Foi assim que ela nasceu no dia das rosas, do mês da montanha do ano de Goethe, quando aquele cachorro sarnento voltou e sentou-se ao seu lado.