quarta-feira, 25 de abril de 2012

Grita!

Tu tens medo!, é a vadia quem proclama. Seus lábios formam um círculo grotesco, em rubro sangue. Não posso recuar, entretanto, porque se o fizer o único que me abraçará será o negro abismo às costas e o seu riso desgraçado cortará a carne, como o ergu que a protege. Penso que ele talvez seja um pouco como eu, do tipo que não tem muito o que fazer nem ninguém a perder. A ideia de que o seu corpo metálico foi moldado nas coxas da vadia me assusta, porque somos mais parecidos do que qualquer um gostaria.

Ela... ela é um adendo à parte. Ela é meu pesadelo. Sua mão me estapeia, seu pé me chuta, eu sinto o ódio, mas o que dói-me mais ela não controla. Não é o corpo que agride, nem a palavra que fere. Antes porém, seja a verdade a culpada. Ela quer que eu morra, quer que eu ceda aos seus encantos e me deixe levar pelo ergu ao meu destino - porque ele e eu assim o somos. Desde o momento em que o meu olhar cruzou o dele, a sensação de reciprocidade é ameaçadora.
Eu vejo o seu olhar, um tanto servil. Indiscutivelmente servil. É patético, eu penso, mas é realmente patética a sua tranquilidade em lidar com o caos que carregamos, é-me também sedutora.

TU-TENS-MEDO!, ela cospe em meu olhar, mas eu o sustento. Foi o primeiro erro.
Ela odeia os próprios olhos, odeia o seu próprio eu, ver-se é-lhe o pior castigo e sim, é por isso que eu o sustento. Se morrerei, dela quero ao menos o ódio, se me é vetado o desprezo. Penso o quão perto do fim estou. Dois passos, com sorte apenas um. Se cair, é para sempre. Mas não cedo. Não cedo porque não quero, embora o corpo implore e a mente seja torpe. Não cedo porque... eu te amo.

De repente, do abismo emergem dez um anjos. Sete mil à esquerda, três mil à direita. O barulho das suas asas... elas brilham e me cegam, mas não surtem qualquer efeito à dupla demoníaca, porque eles também o são. Um último grito.

Recebo as palmas da platéia, e o espetáculo é finalmente bom o bastante.

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