sexta-feira, 25 de outubro de 2013

To Heaven, ou como dragões podem voar


Estou morrendo.
Não de uma doença incurável e silenciosa que me corrói a carne, ou do tempo que me esfola a pele. É algo mais urgente, mais doloroso: aos poucos, queimando contra meus joelhos, sinto a água, fria como gelo, invadindo o carro.

Ironicamente, a única coisa que me vem à mente é um verso de uma música que há muito não ouço: Monkey gone to heaven, do Pixies. No final, quando ele diz que "this monkey's gone to heaven" repetidas vezes, não posso deixar de imaginar vários amigos me dizendo isso, alguns sorrindo e acenando a cabeça.
De repente, me lembro da última vez que ouvi aquela música. Eu tinha por volta dos dezoito e me sentia completamente perdida. Passava meus dias entre cadernos e cds, e aquele dia tinha escolhido uma playlist meio nostálgica. Fora meu irmão quem me indicara aquela música, anos e anos antes. Eu escolhi aquela música em específico, porque queria voltar ao dia em que a conhecera, num tempo menos preocupado, quando eu não precisava desesperadamente escolher o que fazer pelo resto de minha vida.
Lembro que pus os fones e dei play, no volume máximo. Eu nunca fora muito entendedora de música, mas sabia que aquela música tinha algo especial... a melodia me fazia sentir como no mar, fluindo com e contra as ondas. Me fazia viajar fundo dentro de uma torrente de mim mesma, me fazia sentir como quando se sai da água, tendo ficado muito tempo lá: tonto, meio enjoado, mas com a sensação de fazer parte de algo maior e mais forte, que te envolve e te domina.

E quando a música terminou, eu me sentia assim, numa overdose de algo tão grande quanto o mar. Embora a música tenha despertado em mim a certeza de que algo maior me envolvia, eu ainda me sentia deprimida com tudo ao redor, com todos que me faziam escolher coisas que não me agradavam, apenas por escolher.
Lembrei-me, em seguida, que escrevera naquela mesma noite, sobre como me sentia com a ideia da vida que me planejavam, dentro de dez anos. Tive medo que essa vida não se concretizasse, nem que tivesse meus sonhos realizados, ou que não tivesse histórias para contar aos amigos sobre o meu passado.
Não pude evitar um sorriso, quando pensei isso, e senti minha boca lentamente encher-se de água e sangue. Me dei conta de um profundo ferimento em meu peito, por onde uma quantidade considerável de mim se misturava à água. Não quis me importar. Depois de muitos anos de grande espectativa para tudo, eu simplesmente virei as costas para as coisas urgentes, e voltei a mergulhar em minhas lembranças, fechando os olhos com força.
Sim, há dez anos eu me sentia tão infeliz quanto qualquer adolescente pode se sentir. Havia tanta vida, tantos sonhos, tantas opções. E tão pouco tempo! Eu sempre havia sido uma alma indecisa, ou talvez uma doce aventureira, postergando tanto quanto possível qualquer decisão, para enfrentar a adrenalina de escolher várias coisas tão rápido quanto uma curva de montanha russa.

Eu podia ser tanto uma quanto mil outras coisas, e isso, ao contrário de me acalmar, apenas aumentava o meu terror. Eu tinha medo diariamente de me decepcionar, de escolher qualquer caminho e de repente, após uma virada brusca à esquerda, sentir meu rosto de encontro a uma parede sólida o suficiente para me fazer hesitar. Tudo me sussurrava que eu podia dar as costas a essa parede e fazer o caminho de volta, mas eu não podia evitar pensar na dor, ou no possível nariz quebrado que aquela escolha podia me acarretar.
Naquele dia, eu fui para a cama depois de ouvir mais algumas músicas, nenhuma tão intensa quanto Monkey gone to heaven. Escrevi que, em dez anos, eu queria encontrar aquelas páginas de indecisão e medo, e desejar, com toda a verdade em meu coração, voltar ao passado e dar um abraço na garotinha de dezoito anos, assustada como um dragão que acaba de descobrir suas asas e quer voar.
E dez anos depois, eu me senti abraçada por mim mesma enquanto o grande domínio do mar me envolvia.

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