quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Às trevas

Dizem que toda história precisa de um começo, mas a minha não é como a deles. A minha não pode ter um começo, porque ela aconteceu muito devagar, e por isso também, não consegui impedir que acontecesse. Mas, embora a minha história não seja como as dos outros, para todos os fins necessito de um ponto de partida, então tomemos a manhã do dia 23 de agosto, um domingo, há alguns anos.

Mamãe me acordou um pouco mais cedo do que era costume para irmos à igreja e, mais uma vez ao me despir, pedi para usar suas pérolas. Ela apenas sorriu sem me responder, mas eu sabia que a ausência daquele divertido não, querida era mais do que uma vitória. E em frente ao espelho ela, quando me vi vestida com meu melhor vestido, circulou meu pescocinho com as pérolas que eu tinha como as mais belas do mundo. Talvez elas realmente fossem, pois eram de minha mãe.

Morávamos no interior, numa confortável fazenda, e fomos de carro para a cidadela próxima para ouvir as santas palavras do padre. Admito que desde tenra idade não entendia muito bem o propósito de precisarmos sempre acordar tão cedo para ouvir uma outra pessoa, como eu e como você, dizer o que devíamos fazer. Não era a rebeldia que aflorava em mim, era o questionamento. A dúvida. Sempre que eu perguntava a mamãe o porquê da religião ela se calava e me deixava de castigo, e por isso parei de questionar-lhe quando notei que não teria respostas. Bem, mas aquele domingo foi diferente. A paisagem do lado de fora da janela, que sempre parecia me sorrir, hoje estava como se despedindo. Tudo tinha tons de cinza e uma leve bruma forrava nosso caminho; caminho esse que era cortado por um caudaloso rio, com leito de pedra, que já fizera vítimas antes, e certamente fez depois. A ponte que atravessava o rio caíra no último verão, quando o nível das águas subiu demais, e por isso uma pinguela – uma espécie de ponte precária usada provisoriamente em toda a região para atravessar reguinhos d'água e rios menores – continuava de onde a ponte ruíra. Era menos de cinco metros a se percorrer sobre as táboas de madeira, mas o carro era pesado demais.

Caímos os três: papai me tirou da água tão logo conseguiu se libertar e voltou para buscar minha mãe, mas ela não conseguia se livrar do cinto de segurança, e ele jurou que ficaria então ao seu lado. E eu via a luta dos dois, sem saber o que fazer. Era muito cedo, mais do que o costume, e as outras pessoas começaram a chegar apenas algumas horas depois, quando já era tarde.
E de repente eu me senti arrancada do meu mundo, sem rumo nem prumo, nem qualquer parente próximo. Com o passar dos anos comecei a entender o que havia acontecido. Meu pai havia me preterido à minha mãe, porque lhe prometera amor além da vida. Minha primeira reação foi a negação, porque um pai jamais abandonaria sua filha para morrer com sua esposa. Depois, com o tempo me fazendo esquecer alguns detalhes, veio a raiva, porque ele havia me abandonado para morrer com minha mãe.

Eu tinha então dezessete anos de idade e pouco me recordava daquele domingo, quando disse que bastava. Deus não existia, por que permitira a morte de meus pais em detrimento de Sua vontade. Como podia aquele Deus misericordioso deixar uma criança de nove anos órfã? Se Ele assim fosse, não destruiria uma família como a minha. E foi nesse momento em que decidi, e para me garantir de seu cumprimento, anotei num velho caderno, que se tornaria uma espécie de diário, tudo que havia pensando e sentido durante todo aquele tempo. Ao final, como quem se liberta de tremendo peso, respirei, profundamente imersa na poesia.

Aos dezessete era muito diferente de qualquer outro adolescente. Gostava de rock alternativo, mas também ouvia jazz e bossa nova. Conhecia os ídolos teen, mas preferia o clube dos 27. Decidi que me faria atriz, mas é claro que falhei miseravelmente por não conseguir me libertar totalmente do passado. As emoções vinham à tona, mas eu as reprimia, e depois sozinha, chorava por horas. Chorei porque me achava incompetente e também, por ser diferente. E de todas as coisas e pessoas, o que mais me consolava era, contraditoriamente, saber que ninguém saberia o que eu estava passando. Nos que já passaram por experiências semelhantes busco a esperança de que me compreendam.

Pouco depois das aulas de teatro, me inscrevi num curso de desenho. Muito me alegra saber que fui mais bem sucedida com o grafite que com a maquiagem, mas ainda não era o que buscava. Eu só queria alguém para me acolher; ocorri novamente à Deus, mas nada fazia sentido, então me voltei para os homens. Foi um período muito confuso, em que não diferenciava o dia da noite, nem o calor do frio, e trocava de amante mais do que a maquiagem dos olhos. Descobri-me doente, viciada em prazer, mas foi das únicas épocas onde tive um objetivo por mais fútil e errado ele parecesse aos olhos alheios: todos os dias, ao sair de onde quer que estivesse, buscava superar o número de companheiros do dia anterior. Certamente ao leitor, isso parece errado, mas para mim era a coisa mais natural do mundo, e eu lutei para me manter acordada sem a necessidade de comida, porque poderia não atingir minha meta. Troquei o certo pelo errado, e o sexo pela comida.

Assim, do nada, me descobri como uma qualquer, das que tanto condenara. No começo nunca aceitava que me dessem dinheiro por sexo, pois eu o fazia por prazer, mas depois quando todos voltaram o rosto contra mim, passei a cobrar dos novos 'amigos', enquanto achava desnecessário cobrar dos antigos e mais frequentes. Uma éspécie de ética profissional. E embora me prostituísse, de certa forma nunca deixou de ser prazer. Eu gostava de sexo e ponto, e a falta de um namorado ou companheiro para me satisfazer era o motivo das constantes trocas. Pensando assim livrei-me de toda a culpa imposta pela sociedade e segui meu caminho em paz, sem olhar para trás.

Um dia, entretanto, andando por uma cidade qualquer, deparei-me comigo a entrar numa igreja. Notei o altar opulento, ricamente decorado com imagens diversas em metais preciosos, e um jovem padre se aproximou de mim. Minha primeira reação teria sido fugir, pois aquele não era o meu lugar, mas ele fora tão... como dizer? Pela forma como eu me vestia e me portava ele podia me identificar a léguas de distância como o que era. Tinha todo o direito de pedir gentilmente que eu me retirasse, mas ele não fez nada disso. Aproximou-se e me perguntou o que eu buscava na casa do Senhor. Esse termo, casa do Senhor, me surpreendeu pela ironia, mas de certa forma fez com que eu me sentisse mais à vontade. Fez Deus parecer um cara rico com uma casa enorme, onde várias pessoas iam pedir coisas ou dinheiro. Deus parecia um agiota. Um grupo de beatas passou por nós ao sair da igreja com seus véus negros, ignoraram a minha presença. O padre seguia ao meu lado, esperando que eu dissesse algo. Pensei em contar-lhe o que pensara sobre Deus, mas de repente soou-me tão inadequado que calei-me mais.

– Minha mãe com certeza diria que eu estou perdida. E talvez realmente esteja, afinal.
– Qual sua religião, minha filha?
– Não creio em Deus, padre. Ele nunca me valeu quando precisei, de tenra idade.
– Talvez não tenha pedido da forma certa.
– É, talvez tenha sido isso. Agora, de qualquer forma, é tarde demais para pedir por qualquer coisa.

Me virei para sair no exato momento em que ele dizia que nunca é tarde para nada. Para as outras pessoas aquele discurso ensaiado parecia sempre enchê-las da graça do Senhor, mas comigo servia apenas para mostrar o quão indesejável e vil eu era. Vendia meu corpo, aquilo que devia ser tratado como um templo, e isso bastava por si só para me condenar eternamente ao fogo do Inferno. Cheguei ao ponto de tentar me matar, mas me soou tão patético que desisti da ideia. E além disso, se morresse, não faria diferença sequer para ninguém. Ninguém gostava de mim, e não adianta dizer que as casas de apoio apoiam de fato, porque elas te tratam como o que você é. Te dão comida e um lugar para dormir, mas é isso. Ninguém conversa com você, nem busca saber como se tornou o que é. Às vezes parecia que eles faziam aquilo obrigados, tão impassíveis eram.

E um dia, numa das constantes mudanças de cidade que fazia, vi um acidente de automóvel ocorrer do meu lado. Era uma família como a minha: papai, mamãe e eu, dentro daquele carro. E eu era uma criança novamente, enfrentando a água gelada do rio. Papai se soltava do cinto, mas ao invés de se virar para me soltar, ele soltava mamãe e os dois saiam, deixando-me sozinha com as pérolas. Pelo vidro embaçado eu podia vê-los indo embora sem mim, salvando-se da correnteza, mas de repente mamãe se virava e eu ouvia, como quando ouvia suas reprimendas por usar suas pérolas: Isso não te pertence, não é seu por direito divino, e não torne a pegá-las nunca mais, e as pérolas então sumiam, levando consigo toda a claridade das águas daquele rio.

Quando as coisas voltaram a clarear e pude me lembrar vagamente do que havia acontecido, acordei num lugar claro. As coisas todas pareciam nunca ter visto sujeira qualquer, tão alvas eram. Disseram-me que era um hospital. Eu havia morrido. Perguntei onde estavam os demônios a me punir por meus pecados com seus sopros de eterna ira. Todas as faces voltaram-se para mim e como a zombar de um ignorante, repetiram em coro: Aqui. E tudo tornou às trevas.

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