segunda-feira, 11 de abril de 2011

Ares

Micaela andava rápido pela rua, quase tropeçando em suas pernas. Odiava andar para casa tão tarde e sozinha, mas hoje se fizera inevitável. Ela era professora de dança, tinha sangue latino correndo em suas veias, mas não era como suas avós e tias, que, com um pouco de álcool, desafiariam qualquer um para um duelo mortal. Até pelo contrário, sentia-se terrivelmente deslocada entre elas, a eterna garotinha feia da família, embora houvesse se tornado uma mulher bastante bonita para os padrões da maioria.

Estudara em boas escolas, obtivera excelentes notas, enfim, havia trilhado um caminho de grandes, mas não deixara que o sucesso lhe cegasse. Mantinha os pés bem presos ao chão, tanto na dança quanto na vida. Ah... a dança. Sempre tivera um papel importantíssimo em sua vida desde tenra idade, quando por modismo pedira que a mãe a inscrevesse nas aulas de balé, apesar da evidente falta de jeito, até que pouco tempo depois ela descobriu a dança descontraída, sem muitas pretensões além do divertimento. Daí até a absoluta paixão não foram mais de dois anos, e agora, após várias temporadas longe de casa, ela voltava como uma das melhores professoras de sua escola; voltava para o anonimato e, felizmente, voltava realizada.

Ouviu um barulho nas latas de lixo e em seguida uma enorme mancha preta se esgueirou por entre os sacos e tampas. Micaela prendeu a respiração, crendo ser algum mal elemento que pretendia assaltá-la, mas era apenas um gato de rua. Os dois se fitaram mutuamente, com espanto, até o gato encontrar algo mais interessante que a morena numa lata próxima. Ela respirou relaxada e prendeu a bolsa tiracolo mais a seu flanco direito, bem distante da via comum da rua. Andou mais algum tempo sem encontrar vivalma, apenas ouvindo o barulho de seu coração e de seus passos, até que virou numa viela atravessada e deparou-se com um simpático senhor atrapalhado com suas compras.

Eram duas sacolas dessas de mercado comuns, dentro ela pôde ver as compras comuns de uma pessoa para um jantar. Os dois se olharam e ele abaixou o olhar, respeitoso, para a formosa dama que aparecera do nada. Havia alguns anos que não tinha relações sociais mais com os 'novos adultos', de forma que ficou um tanto surpreso ao vê-la tão apegada à sua bolsa de couro legítimo e bem escondida atrás do casaco; estava muito acostumado à ver as mulheres seminuas, mostrando tudo o quanto era possível mostrar, às vezes, mais.

Micaela observou o senhor curiosa, já que as pessoas, àquela hora, deveriam estar todas em suas casas assistindo TV e conversando sobre seu dia com seus pais e irmãos. Depois dessa observação ela sorriu, se achando a mais cafona das mulheres, afinal, se todos estavam em casa, que estaria ela fazendo ali? Foi quando ela ouviu o barulho de garrafas se quebrando. Por instinto, se abrigou nas sombras da viela, meio escondida atrás de umas latas e sacos, rezando para que não fosse nada. Quando ela virou-se na direção de onde viera, seu sorriso assustado se apagou e ela viu três coisas: sacolas, sangue e a Morte. O simpático senhor se fora.

A morena conteve o grito que subia por sua garganta e tentou ficar o mais imóvel possível, para que quem quer que houvesse assassinado o senhor não pudesse vê-la, mas não havia ninguém lá. Engoliu em seco, sentindo a bílis subir pela garganta ao notar uma sombra se aproximando do corpo cercado com as compras. O homem que se aproximava, de repente, abaixou-se e verificou se o senhor estava morto, depois de constatar que sim, levantou-se e estalou a língua. Uma montanha enorme de pêlos não tardou a aparecer ao seu lado, com aqueles olhos faiscantes. – E então, Ares? – o gato ronronou e seguiu a diante, parando aos pés de Micaela. – Ora, ora, você é bom, hein. – disse o homem ao se aproximar dela, a morena não podia vê-lo, mas sua voz era arrastada e quase inaudível, o sussurro da Morte. Ouviu-se um grito e depois, nada mais.

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