domingo, 3 de abril de 2011

O táxi

Odete sabia que não havia sido uma criança normal, não tivera aquele gosto de brincar em frente à casa sob a vista grossa dos pais, não se sujara como as outras crianças normais... preferia por vezes a companhia de animais à de pessoas. Pessoas falavam o que pensavam, animais, se pensavam não falavam; isso era suficiente para ela. Tivera alguns animais quando pequena, cachorros e gatos eram abundantes no lugar onde ela morava - uma cidadezinha interiorana onde todos sabem o que se passa com os vizinhos - e não raro um ou outro aparecia atropelado por um carro qualquer. Era nesses momentos que ela se mostrava ativa e jurava de morte a pessoa que caso algum dia atropelasse um de seus animais, era vingativa e não descansaria até encontrar quem o fizera.

Eis que num dia, quando saíra mais cedo da aula, estava sentada em frente à casa olhando para a rua. Seus pais não estavam e, portanto, ela ficara fora de casa, pois não tinha a chave da porta. Olhando para o pouco movimento que havia ali, ficou olhando para um gato de rua que brincava com uma sacola de lixo. Ele devia ser bebê ainda, era pequeno e malhado com cinza escuro e claro. Era bonitinho, a menina até cogitou adota-lo porém já tinha dois cães pequenos e duvidava que os pais aceitassem mais um filhote em casa. Passou algum tempo focada no pequeno animal até que a carrocinha passou e pegou o pequeno para pô-lo junto aos demais filhotes abandonados. Ela derrepente se viu desconfortável com aquilo, não queria que o gato tivesse aquele mesmo fim que os outros. Ela já sabia que se ninguém o adotasse, ele seria sacrificado porque a prefeitura não poderia mantê-lo. Quis pedir para o moço que não o levasse, mas não ia adiantar, ela sabia.

O táxi parou derrepente, fazendo com que ela saísse de seus devaneios. Olhou ao redor, estava em um posto de gasolina. – Desculpa, é que tem de encher o tanque senão não roda. – e sorriu, com os dentes amarelados e os olhos castanhos brilhando. Odete assentiu e olhou para o lado de fora do carro. Lá a noite estava mal iluminada e densa, a chuva tornava aquela sensação ainda pior. Não tinha medo de trovões nem de tempestades, simplesmente não conseguia ver tamanha beleza que os poetas atribuíam à noite; ela era misteriosa, tudo bem, mas era tão... comum, tão cotidiana que ela por vezes se esquecia da mesma.
Ela jamais a subestimava, só a colocava naquela gaveta de 'sem importância' junto com várias outras coisas, enquanto suas maiores preocupações a cegavam. Enquanto suas colegas de escola agora tinham se casado e tinham vários filhos, passando por dificuldades, Odete nunca sequer tivera namorado - apenas alguns companheiros, sem qualquer importância - e nem cogitara ter filhos. Agora, entretanto, sentia falta de alguém para conversar, talvez por isso era tão só.

Sentiu aquele típico cheiro de gasolina e de posto, aquilo era horrível, mas ela não podia evitar então fechou os olhos e deixou a cabeça pender para trás. Ficou um tempo assim até sentisse o corpo se retesar e então relaxar; era um convite silencioso para uma noite de sono, mas ela não podia, então arrumou sua postura e ergueu a cabeça. Deparou-se com os olhos castanhos do motorista fitando-a pelo espelho retrovisor. Horas atrás ela manteria o olhar firme, mas não agora, baixou o seu e ficou olhando para suas mãos.
Tinha dedos longos, que agora seguravam sua bolsa com cuidado. Gostava de suas mãos, elas impunham o respeito e a autoridade de que ela tanto necessitava para viver. Eram seu meio de trabalho, era com elas que ficara famosa. Odete Saint-Blair, uma reconhecida jornalista e crítica de moda, uma megera para a maioria de seus empregados, odiada por todos, estava sentada num táxi baixando seu olhar para o motorista. Algumas pessoas com quem trabalhava pagariam milhões para ver aquilo, ela, entretanto, não ligava para o que eles pensavam. Ela não podia imaginar o que se passava com o motorista para encará-la tão energicamente, talvez ela não devesse ter pego aquele táxi, afinal, o motorista podia até ser um maníaco... quem sabe, mas era um risco a se correr, todos os dias.

O frentista fez sinal de que já havia terminado seu trabalho e que ele já podia sair dali e ir ao caixa pagar. Aquele posto era diferente, os frentistas - após muitos assaltos - não ficavam com o dinheiro, os clientes deveriam se dirigir a uma espécie de caixa onde um atendente - em geral uma estagiária precisando de dinheiro - e um guarda receberiam o dinheiro. Aquele esquema se mostrara falho por duas vezes, mas os donos não estavam dispostos a re-implantar o antigo sistema e deixavam como estava. O motorista pagou o valor e saiu, voltando para a rua bem iluminada por grandes postes.

– Meu nome é Murkus. – ele não sabia o motivo, mas notara que aquela mulher não era como as outras, ela podia aparentar aquela altivez de alguém dos altos círculos sociais, mas não era fútil como as que via na televisão. Odete se surpreendeu com a voz dele. Não era excessivamente grave, em sinal de masculinidade, mas também não era soprana, era jovial.
– Odete. – respondeu, simplesmente, ainda olhando para suas mãos, a voz fraca.

Markus trabalhava como taxista desde que se lembrava, não se imaginava longe daquela profissão por mais que insistisse que era provisório. Casara-se, criara três filhos e mantinha uma pensão para a mãe com aquele emprego, logo, não tinha nada a perder ali. Tinha apenas trinta e cinco anos, porém, os longos congestionamentos e a rotina estressante haviam deixado marcas profundas em sua tez, parecia muito mais velho do que era, apesar disso, era bonito. A esposa sempre dizia que tivera muita sorte ao casar-se com ele, Markus apenas ria, envergonhado. Marie, sua esposa, era três anos mais nova, e, no entanto, parecia ainda uma modelo. Era estranho o contraste entre os dois: ela, sempre bem vestida e perfumada, deixara a família para casar-se com ele, um jovem estudante sem qualquer estabilidade financeira e sem diploma. Casaram-se numa cerimônia simples, apenas para os amigos mais íntimos e a família - a dele, já que a de Marie recusara o convite -. Mudaram-se para um pequeno apartamento no subúrbio da capital, longe do glamour da sociedade onde Marie estava acostumada a viver.

O que o atraía em Odete não era sua beleza, mas sim sua semelhança com Marie quando esta era mais jovem. Antes dos problemas típicos de um casamento de contrastes, e principalmente, antes dos filhos. Odete, ainda que com os cabelos úmidos e a roupa molhada, tinha classe, exatamente como Marie. – Desculpe a indiscrição, mas porque parece tão triste? – a mulher se surpreendeu com a pergunta, até pensou em ignorá-la, mas a curiosidade era maior.
– Se fosse apenas um motivo tenho certeza que não estaria. – respondeu, olhando-o pelo retrovisor como ele antes fizera.
– As pessoas costumam ver problema em coisas simples, coisas que não existiriam caso não quisessem.
– Eu tenho certeza de que não quero esses problemas, ainda assim, eles não necessariamente desaparecem. Diria que o contrário, até.
– Há alguns anos eu até concordaria com a senhora, mas hoje eu sei que não, e que tudo que nós temos é porque: ou pedimos, ou devemos. E não acho que a senhora deva algo a alguém, então, só resta uma alternativa.
– Talvez. Ainda não sei, mas é provável que sim. – Ela não sabia porque seguia naquela conversa, mas sentia-se estranhamente confortável com ele. – Também é provável que nunca descubra.
– É muito improvável que o nunca se repita. – um momento de silêncio. – Eu nem deveria estar falando com a senhora, desculpe.

E ambos se calaram por algum tempo. Odete voltou a olhar para fora do carro, pensando no que ele havia dito. Devia ser verdade, porém, ela tinha de aceitar que aqueles espinhos - querendo ela ou não - agora eram parte dela; assim como eram da natureza de todas as rosas de todo o mundo. Abriu sua bolsa e pegou um papel amassado, era um rascunho de uma carta. A caneta bic havia borrado - ou eram as gotas de chuva? -, mas ela não ligava para isso. Na verdade, nem sabia o porquê por trás daquela carta, mas ainda assim a havia escrito.

Havia tantos anos que ela não escrevia por escrever, havia deixado esse hábito conforme subia na hierarquia da empresa, não havia tempo para perder com isso quando deveria fazer reportagens que fariam com que ela ganhasse alguma importância. Não que ela quisesse importância por importância, queria fazer um bom trabalho e ser reconhecida por isso, como qualquer pessoa que sabe ser um bom empregado. Então, Alexei chegara com aquela idéia louca de fazerem a sua própria revista, ela aceitara claro, achando ser mais um delírio do amigo, e, no entanto, agora ela era uma das editoras-chefe e era muito bem reconhecida.
Sorriu, sentindo-se mais nostálgica ainda do que antes, mas ela não podia fazer nada. Tocou levemente no ombro de Markus e pediu que ele seguisse para seu apartamento, ainda sorrindo. Tinha o semblante mais leve, até um tanto divertido com os cabelos emaranhados e a roupa molhada. Ele seguiu logo para lá, não estavam muito longe de qualquer forma. Não se falaram no caminho, mas palavras não eram necessárias para que ela agradecesse ou coisa semelhante, e ele sabia disso.

Quando chegaram ao condomínio em que ela morava, Markus não pôde deixar de se sentir muito surpreso. Lógico que ele sabia que ela não era exatamente pobre, ou classe média, mas não esperava encontrar um arranha-céu com câmeras de segurança por todos os lados e principalmente o nome: Edifício Carly Edson, que ele conhecia muito bem. Odete pagou-o e saiu do carro ainda sorrindo, em seguida rumou para a entrada do edifício sem notar o olhar perdido de Markus, olhando para ela e para o edifício.

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