domingo, 3 de abril de 2011

A praça

Ali, sentada olhando para o nada, parecia muito bem mais velha do que realmente era, mas era só cansaço. Sua rotina era pesada: mais de cem horas semanais, tinha apenas a terça-feira para dormir. Dormir para quê?, ela respondia quando lhe perguntavam, e sorria. Ainda lembrava-se dos primeiros anos naquele mercado, tudo era tão difícil e não havia 'salário', apenas uma ajuda de custo para a condução que ela precisava pegar todos os dias. Todos lhe diziam que aquilo não lhe daria futuro e que devia pensar em dinheiro e não em arte, mas ela persistiu. Levou anos – mais do que ela gostaria, até – porém, agora ela estava no topo.

Conservava poucas amizades daquele tempo e podia até dizer que seu único amigo era Alexei, seu companheiro de aventuras. Embarcaram naquilo todos os dias, juntos, mesmo separados por um oceano de idéias. Algumas especialmente contraditórias, diga-se, mas outras floresceram. Odete pegou um punhado de milho e jogou aos pombos, nostálgica. O mundo rodava lentamente, como que com preguiça de lutar por luz. Por vezes ela mesma tivera força de apressar o tempo, mas agora sentia-se velha e fraca demais para aquilo, então, não resistia àquela sensação de formigamento que invadia seu peito. Ela nunca havia sentido isso antes, mas sabia o que era: culpa.

Havia construído uma carreira com o trabalho alheio, ela sabia, mas buscava justificar-se de alguma forma e perdia horas nas madrugadas diante de fotos e fatos, só pensando nos detalhes. Tinha essa mania, era perfeccionista ao extremo com tudo e todos. Não gostava de admitir o que era a verdade: nada daquilo era seu, ainda assim, todos os dias ela comemorava seu sucesso. Um celular tocou. Ela demorou a notar que era o seu próprio, olhou no visor, era Alexei. Imaginou o que ele queria, só então atendeu. A voz aguda do homem a assustou, mesmo há anos convivendo juntos ela não se acostumara.

– Onde você está? Vou buscá-la agora.
– Não – a sua voz era apenas um sussurro rouco –, eu quero ficar sozinha.
– Está novamente nostálgica ou é um daqueles surtos criativos? Os adoro, você sabe.
– Nada, só quero ficar sozinha. – e desligou, desligando também o aparelho.

Odete não tinha certeza se era verdade, mas a solidão era mais... fácil. Sim, era essa a palavra: facilidade. Havia nascido sem espaço, cercada de pessoas como uma flor num canteiro velho e abarrotado de profundas raízes, naturalmente, ela aprendera a blindar-se daquelas raízes. Mas, e agora? Ela havia conquistado seu espaço de direito, devia despir-se das proteções, certo? Ela queria, oh como queria, mas não era tão simples assim, não. Desde criança ela sofrera, tivera depressão e repugnava o próprio rosto; fugia das pessoas e dos espelhos.

Crescera, florescera e com isso vieram as proteções. Agora, crescida, era bela, porém, cercada de grandes espinhos. Fechara-se em si mesma, sentia-se só mesmo cercada de "pessoas". O que era isso?, ela certa vez perguntara a um certo alguém. É o nada., lhe respondera, mas aquilo não bastava, e por isso ela, sem notar, retirava-se todos os dias para sua solidão barulhenta. Em sua essência, buscava nas folhas das edições que publicava as respostas das quais tanto ansiava. Nunca havia o nada, mas também nunca havia o nunca... estava confusa.

Lera tantos livros, ouvira tantos psicólogos, todos diziam a mesma coisa: não há nada com você. Era isso que a irritava, essa persistência no nada. Um joguete de palavras como tantos outros que ela conhecia. Era nesse momento em que ela erguia-se imponente, como aquela rosa. Todos a viam por suas pétalas, mas aqueles que se aventuravam a tocá-la sempre saiam feridos. Observava agora o bater de asas de uma das pombas, era algo tão natural, algo que ela apreciava. Imaginou porque os seres humanos não poderiam ser como eles, e foi então que a pomba voou quando Odete se levantou. Era por isso.

Agora, de pé, sentiu os pés arderem e não hesitou em arrancar os scarpins altos e jogá-los longe. Seus pés eram tão longos e fazia tanto tempo que não os via que quase não se reconhecera. Mesmo apegando-se aos detalhes, a última vez que fizera aquilo fora em segredo. As modelos eram lembradas por seus corpos e rostos, mas nunca, nunca mesmo por seus pés; o mesmo acontecia com ela, com a diferença que ela seguia repudiando o próprio rosto - apenas mais discretamente agora.

Era muito jovem quando aquilo acontecera; esquecera de certas coisas, de alguns detalhes. Não se lembrava com certeza de quando, mas havia sido por volta dos sete anos. Havia brigado com uma colega e também com os pais; passara a noite em claro se olhando no espelho, tomando nota de todos os detalhes, pois tinha medo de se esquecer. Desde então, ela evitava ao máximo se olhar, pois tinha medo do que veria refletido. Tão jovem..., ela dizia às jovens modelos que temiam às suas carreiras vai passar, não tema., quando ela própria ainda não havia superado seus traumas de infância. Seria ela hipócrita? Jamais, ela sempre se consolava, da mesma forma como antes. Será que isso a tornaria uma víbora como a outras? Quem era a vilã e quem era a mocinha dela própria? O que era certo e o que era errado? Essas perguntas eram frequentes desde sempre. Odete fora uma mulher precoce, e talvez por isso criara espinhos ao redor de si.

Agora tentava desesperadamente se desfazer deles e novamente, como antes, batia de frente com seu reflexo no espelho. Era tudo tão confuso, ela era apenas uma criança, apenas uma criança! Eles não tinham o direito de fazer isso com, não! Então tudo ficou escuro derrepente e ela sentiu-se esvaindo, cansada, e deixou-se levar.

Foi tudo rápido, ela agora estava diante do mar e tinha nove anos; era a primeira vez que conhecia o som da vida. Entrou na água com cautela, primeiro, só os pés: sentiu o frio da água; avançou mais um pouco e de tão encantada que estava, não ouviu os pais avisando que iriam comprar um picolé – eles também não se importaram em gritar um pouco mais alto, tinham pressa –. Então num segundo ela desbravava a costa, como aquelas super-heroínas que tanto amava; tudo ficou escuro e ela não mais conseguia respirar, sentia que sua mais nova amiga a engolia: a curiosidade.

Acordou dois dias depois no hospital, tinha tubos entrando e saindo de seu corpo mas não tinha medo. Tinha o peito e a mente aberta para novas experiências e sensações. Naquele mesmo dia teve alta, os pais precisavam trabalhar e não podiam faltar. Ela lembrou-se da enfermeira, era loira e tinha os olhos castanho-escuro; muito vívidos. Ela amava aquilo que fazia, ela era humana.

Já era tarde quando saíram, já no carro ela deitou-se no banco traseiro mas não dormiu, preferiu ficar olhando para aqueles pingos de tinta no céu. O pai notou o olhar interessado e lhe explicou o que eram as estrelas e o principal: elas estavam muito, muito longe dali; bastou para que ela decidisse largar as bonecas e pedisse uma luneta. Não ganhou, porém, engenhosa e geniosa que era, fez a sua própria com um canudo de papelão e cacos de vidro. Começava ai o seu interesse pela ciência. Mas já era tão tarde da noite que ela logo adormeceu. Não viu o pai pegando-a no colo para levá-la para casa, mas sentiu o calor e aconchegou-se.

Quem é aquela mulher sentada no chão, descalça e com o olhar perdido?, ela ouviu alguém perguntar, só então seus olhos retomaram foco e as sombras tomaram formas. Quem sou eu?, ela não sabia a resposta, mas adoraria que alguém que soubesse pudesse lhe dizer. Sentiu as primeiras gotas de chuva no rosto, Sol e Chuva... pensou, lembrando-se dos versos que aprendera ainda pequena, não lembrou-se do resto, entretanto. Havia coisas que ela fizera questão de apagar, outras haviam acontecido há tanto tempo que ela naturalmente havia se esquecido.
Essa era uma delas. Ouviu uma criança sorrir com as gotas de chuva, lembrando-se dos filhos que não teve. Lembrou-se derrepente de tudo que havia abdicado por sua carreira e sentiu-se uma tola. Perdera os melhores momentos de sua vida criticando o trabalho alheio e faturando com isso. Sentiu-se uma modelete no início de carreira.

Mas o que era isso, afinal? Um mercado onde seres humanos têm prazo de validade como animais abatidos? Algo semelhante, era verdade, porém, não tão cruel. Será? Ela sabia que a única diferença entre aquele animal abatido e uma de suas modelos era o polegar opositor – porque o cérebro não era tão diferente assim, diga-se –. A chuva começou a engrossar e rapidamente ela já estava encharcada e o penteado, desfeito; a praça, vazia, exceto por ela própria e seus muitos reflexos.
Ela era a chefe má que cobrava de seus funcionários, era o bom-gosto, a elegância... mas, no fundo, depois de passar por todos os espinhos, ela era um pequeno caule desprotegido. tão frágil quanto aparentava, talvez mais até.

Sentiu o peso da noite cair sobre si, já era hora de partir, então. Com os sapatos em uma mão, a bolsa na outra e os cabelos soltos e molhados, ela parou um táxi e pediu que o motorista apenas rodasse por ai, sem um destino pré-imposto.

– Isso vai custar caro...
– Não me importo, por favor. – ela não era mais aquela garota pobre que pegava uma condução cheia para ir ao trabalho.

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